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Diálogos sobre uma Educação Antirracista à luz das vozes de mulheres negras

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Educação antirracista não é um complemento ornamental. É uma escolha política e pedagógica que atravessa todo o currículo, incluindo a matemática. Quando repensamos práticas, autores e conteúdos, abrimos espaço para uma escola que reconhece culturas, histórias e saberes diversos como parte do próprio tecido social e cognitivo dos estudantes.

Provocação inicial: cultura, rituais e a naturalização do que é nosso

A reação a rituais de sacrifício animal costuma revelar mais sobre quem julga do que sobre quem é julgado. Se um jantar de Natal é assinalado como tradição e naturalizado, por que rituais de outras tradições aparecem como “estranhos”, “cruéis” ou “primitivos”?

Uma estratégia pedagógica poderosa é inverter a perspectiva para tornar evidente essa dupla medida. O exercício do Nacirema — uma reescrita etnográfica em que “Nacirema” é “America” ao contrário — exemplifica isso: descreve de forma distanciada rituais que, quando traduzidos, são idênticos aos nossos rituais cotidianos. O efeito é desconfortável e necessário: expõe o etnocentrismo e nos força a perguntar quem define o que é “cultura” e o que é “outro”.

Cada um de nós, quando olha no espelho, vê o reflexo da história.

Ao trabalhar em sala, vale provocar os estudantes com imagens e perguntas que mostram como naturalizamos práticas próprias e exotizamos as práticas alheias. Esse tipo de atividade abre caminho para uma educação que reconhece vozes, corpos e saberes historicamente marginalizados.

Leis e obrigação curricular: Lei 10.639/2003 e Lei 11.645/2008

Mais de duas décadas após a aprovação da Lei 10.639/2003 (inclusão da história e cultura afro-brasileira no currículo) e mais de quinze anos desde a Lei 11.645/2008 (que ampliou a obrigação à história e cultura indígenas), ainda há escolas e formações docentes que tratam esse conteúdo como opcional.

Essas leis não recomendam temas pontuais: definem que o ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena deve atravessar o currículo de modo articulado. Ou seja, não é apenas história ou geografia que deve trabalhar esses temas. A formação inicial do professor é um espaço estratégico para garantir que isso aconteça de forma sistemática.

Por que uma educação matemática antirracista?

Direito à investigação histórica e cultural no currículo implica também trazer outras formas de conhecer para áreas tradicionalmente tidas como “neutras”, como a matemática. A etnomatemática mostra que saberes matemáticos existem em diferentes comunidades e surgem de práticas sociais, artesanais, corporais e religiosas.

Uma educação matemática antirracista:

  • Reconhece que o conhecimento matemático não nasceu apenas da tradição europeia.
  • Integra saberes afro-diaspóricos, indígenas e quilombolas em problemas, projetos e investigações.
  • Valoriza linguagem, oralidade e corporeidade como formas legítimas de construir sentido matemático.

Vozes de mulheres negras que orientam práticas

Ao repensar currículos, é estratégico centrar autores historicamente marginalizados. Trago três contribuições que orientam práticas anti e decoloniais:

Maria Martins

Poeta, pesquisadora e promotora da ideia de oraliture — um conceito que incorpora oralidade e corporalidade como modos de criação e transmissão de conhecimento. Sua obra revela caminhos para práticas que valorizem narrativas, performance e memória em sala de aula.

Nilma Lino Gomes

Pedagoga e antropóloga com vasta atuação em políticas públicas e formação docente. Seu trabalho é referência para pensar movimentos sociais negros, práticas educativas e a construção de currículos que sejam culturalmente sensíveis e politicamente comprometidos com a igualdade.

Zoilda Loreto da Trindade

Educadora que concebeu recursos formativos para professores e propôs a mandala dos valores civilizacionais afro-brasileiros. A mandala reúne conceitos como circularidade, corporeidade, musicalidade, memória, ancestralidade, cooperativismo e energia vital — categorias que ajudam a tomar decisões curriculares não eurocêntricas.

Perguntas práticas para repensar a sala de aula

Algumas perguntas ajudam a orientar mudanças concretas no design curricular e nas práticas docentes:

  • O que você lembra de ter aprendido sobre a África na escola?
  • Por que ensinamos tanto sobre a história europeia e tão pouco sobre a africana?
  • Quais países africanos contribuíram culturalmente para a formação do Brasil? Consegue citar três?
  • Quais técnicas artísticas ou saberes práticos no Brasil derivam de tradições africanas?
  • Como posso transformar um conteúdo matemático para que inclua histórias, contextos e problemas vindos de saberes afro-diaspóricos e indígenas?

Recursos práticos e caminhos formativos

Algumas ações e materiais que ajudam na operacionalização:

  • Incluir leituras de autoras negras e materiais produzidos por movimentos negros e indígenas no plano de formação docente.
  • Utilizar a mandala de valores civilizacionais como mapa para escolher atividades e temas que valorizem corporeidade, música e memória.
  • Buscar propostas de antirracismo na matemática — existem cadernos e coletâneas com sugestões de atividades e projetos que aproximam a matemática de práticas culturais.
  • Planejar avaliações e projetos que permitam múltiplas linguagens: oral, visual, gestual e escrita.

Duas perguntas finais para levar consigo

  1. Como minha postura enquanto educador pode abraçar a agenda antirracista de forma concreta e cotidiana?
  2. Que transformações o currículo precisa para ser, de fato, decolonial e antirracista — e qual é meu papel nessa transformação?

A transformação curricular é um trabalho longo e coletivo. Começa nas decisões diárias: que autores escolho, quais histórias conto, quais problemas proponho e quem eu reconheço como produtor de saber. A partir das vozes e práticas de mulheres negras, das leis que obrigam a diversidade curricular e de provocação crítica, é possível construir escolas que ensinem respeito, conhecimento e justiça.

Continuar aprendendo significa buscar formação, ler autoras e autores diversos, experimentar atividades que integrem saberes tradicionais e colaborar com comunidades locais. A escola pode ser um lugar de reparação e reconhecimento quando as práticas deixam de reproduzir hierarquias e passam a celebrar pluralidade.

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